em 11 de Julho de 2012
Toma mais dos pobres, também, porque a estrutura tributária é injusta: penaliza o salário e protege o rendimento financeiro.
Política de cotas
Quando
destrói a escola pública, o Estado reacionário decide dificultar o
acesso do pobre à escola universitária pública, gratuita e de boa
qualidade, e ao fazê-lo procura reservá-la àqueles que puderam
frequentar cursos preparatórios de qualidade.
O sempre
mestre e sempre saudoso Evandro Lins e Silva lembrava-me a força de
bisturi da lógica de Anatole France desmontando o igualitarismo
farisaico do direito liberal:
“Em sua
igualdade majestática a lei proíbe tanto ao rico quanto ao pobre dormir
embaixo da ponte, esmolar nas ruas e furtar pão”.
Os dois
mestres e a sentença genial me vêm a propósito de telefonema de prezada
amiga e leitora, que me interpela pedindo justificativa para as
políticas de afirmação positiva:
“Se somos todos iguais, não seria uma discriminação contra os outros, o privilégio dado aos negros no acesso à universidade?”
Ora, não
somos iguais, e uma das maiores farsas do direito de classe é a
afirmação, consagrada nas chamadas constituições democráticas, de que
‘todos são iguais perante a lei’, que só poderia ser aceita como projeto
de uma sociedade igualitária. Numa sociedade de classes, como a
brasileira, essa ‘igualdade’ formal, tomada ao pé da letra, significa
simplesmente a manutenção das desigualdades e o aprofundamento da
dominação dos pobres. Na verdade, somos desiguais (uns mais fracos
outros mais poderosos, uns mais aquinhoados outros menos aquinhoados,
uns ricos outros pobres – e, outros, miseráveis), e, por isso, a
igualdade só se busca quando os diferentes são tratados de forma
diferenciada. A formulação marxiana – ‘De cada um de acordo com suas
possibilidades, a cada um de acordo com suas necessidades’ – parece-me a
mais correta e a única de corte humanista. Não pode o Estado cobrar de
todos os mesmos deveres, nem oferecer a todos os mesmos direitos, pois,
dos poderosos, dos ricos, incumbe-lhe cobrar mais e aos mais fracos, aos
mais pobres, oferecer mais (porque deles, tomou e toma mais).
Mas,
observe-se que, se a maioria da população legitimar um Estado que de
pronto consagre a desigualdade absoluta entre seus súditos, legitimará a
Pretória do Apartheid, legitimará o statu dos dalits, intocáveis, seres
inferiores para 60% da população indiana. No mundo do homem, é desafio
buscar a igualdade na desigualdade.
É farsa
dizer que o filho do pobre, já inferiorizado em todos os sentidos por
ser pobre e arcar com todas as consequências daí resultantes (moradia
precária, má alimentação, baixa escolaridade familiar etc.), que
frequenta nossas péssimas escolas públicas de ensino básico, fundamental
e médio (quando delas não é afastado para contribuir na composição do
salário familiar), desaparelhadas propositalmente desde os primeiros
governos militares, é farsa dizer, repita-se, que esse filho do pobre
tem, no vestibular de acesso ao ensino superior (e o vestibular já é em
si uma consagração da diferença) as mesmas oportunidades do rebento da
classe média alta, que estuda em escolas privadas e caras, equipadas com
laboratórios e bibliotecas, com acesso ao “cursinho”, a estudo
particular de línguas e a viagens internacionais de intercâmbio – e, com
tudo isso e por tudo isso (acrescente-se à lista a rede de contatos,
importantíssima na nossa cultura do favor), ingressa no mercado de
trabalho muito mais tarde e com preparo incomparável, numa disputa com
só os seus pares.
O Estado
(os teóricos do reacionarismo não são burros) quando destrói a opção da
escola pública, abastardando sua qualidade, está conscientemente
desaparelhando o pobre na disputa do mercado de trabalho e impedindo sua
ascensão social e a conquista da cidadania, pois mercado e cidadania
são reservados aos ‘mais iguais’, os filhos da classe média alta. Quando
o Estado põe esse pobre e esse rico “em igualdade de condições” na
disputa do que quer que seja, mas principalmente na disputa de uma vaga
na universidade pública, está punindo o pobre. E quando digo o pobre,
refiro-me, principalmente, aos negros, porque no Brasil a pobreza tem
cor. À nossa dívida pela discriminação econômica, soma-se, como elemento
ético, a dívida impagável de brancos e escravocratas.
Quando
destrói a escola pública, o Estado reacionário decide dificultar o
acesso do pobre à escola universitária pública, gratuita e de boa
qualidade, e ao fazê-lo procura reservá-la àqueles que puderam
frequentar cursos preparatórios de qualidade. A decisão da sociedade de
classes é essa: aos pobres a formação secundária de baixa qualidade que
não os capacita nem para o vestibular da universidade pública nem para o
mercado de trabalho, cada vez mais exigente; aos ricos a escola
universitária de qualidade, a carreira universitária, a pesquisa, as
grandes clínicas e os grandes escritórios, enfim, a reprodução do poder e
da dominação. É ou não é um sistema de cotas às avessas?
As
universidades públicas, sejam estaduais, sejam federais – por exemplo, a
USP, a Unicamp, a UFRJ e outras que tais – são, a rigor, as únicas que
oferecem, na área técnica, laboratório, pesquisa e, quase sempre, bolsas
de iniciação científica, custeadas, é evidente, ora pelo CNPq, ora pela
Finep, ora pela Fundação de Amparo à Pesquisa do respectivo estado.
Aliás, as universidades públicas são responsáveis por algo como 80% dos
cursos (respeitáveis) da área técnica, como as engenharias em geral,
medicina, física etc. Por todas essas razões, seus vestibulares são os
mais procurados, e, por serem os mais procurados, os mais difíceis. Ou
seja, são acessíveis apenas aos vestibulandos mais bem formados, filhos
da classe média, de média para alta. Com esses jovens evidentemente não
podem concorrer os pobres egressos da escola pública secundária, de
baixíssima qualidade, restando-lhes as inumeráveis espeluncas espalhadas
pelas esquinas como os botequins, que estão, no país inteiro, há
décadas, imprimindo diplomas de ensino superior sem serventia no mercado
competitivo.
Mas quais
são os cursos que lhes são reservados, aos pobres, na escola privada? Os
técnicos? Não. Esses são caros e o ensino privado é um ramo da
atividade comercial, que persegue o lucro (já há dessas empresas com
ações em bolsa!). Aos pobres são destinados os cursos que não requerem
laboratórios nem professores de tempo integral, que podem ser dados em
salas com mais de 50/60 alunos, cuja didática depende exclusivamente de
exposições do professor mal-remunerado correndo de uma escola para
outra, de uma aula para outra, para assegurar o salário mensal. Depois
de quatro anos de ‘estudos’ e muitas mensalidades e matrículas pagas
pelo esforço familiar, o jovem pobre sai da ‘faculdade’ com um canudo de
advogado, de jornalista, de assistente social, disso ou daquilo, e
volta para seu empreguinho de origem, no comércio, na indústria, onde
puder. Doutor de canudo, anel, foto e festa de formatura, mas sem
qualificação e sem mercado. Enquanto isso, seu colega (de geração) que
conclui também o curso, mas ou na universidade pública ou numa PUC, já
se prepara, com bolsa, para o mestrado, já pensando no doutorado no
exterior. Ou já sai empregado, quando não começa a trabalhar nos últimos
semestres. Cedo, recomendado pela verdadeira grife que é o só nome de
sua escola, já terá conhecido os primeiros estágios profissionais.
É o ensino na sociedade de classes.
A política
de cotas visa a reduzir essa injustiça. Os reacionários de todos os
quadrantes bradam que isso quebrará o ‘alto’ padrão do ensino. A
realidade – como sempre ela! – os desmente. Os egressos da política de
cotas e de programas como o Pró-UNI têm-se revelado, no geral,
excelentes alunos.
Autor: Roberto Amaral
Fonte: Carta Capital
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